sexta-feira, 6 de março de 2009

Eu tenho pena!

Em meados de Setembro de 1987, tinha eu 5 anos, saí um dia de manhã de casa e fui para a escola. Fui com os meninos mais velhos, porque ainda era pequenina para ir sozinha. Mas já sabia o caminho, porque a escola era pertinho. Se chovesse, o meu avô ia lá levar-me. Mas não choveu. E então eu fui com os meninos. Levava a mochila mais gira que vi até hoje. Umas semanas antes tinha ido com a mamã e o papá à Românica e eles tinham dito que eu podia escolher tudo o quisesse. Escolhi tudo cor de rosa. Lápis, canetas, borracha, cadernos, papel de encadernar, estojo, mochila, chapéu de chuva, capa de chuva (sim... já havia disto! Na 3.ª classe tive uma verde alface tãããooo gira!)... A mochila, ainda a guardo. Era de pano, cor de rosa forte, e tinha a aplicação de uma menina, feita de trapos e lã, com duas tranças... Eu também tinha duas tranças.
Nesse dia, conheci aquela que viria a ser conhecida como a "familia cupuleta", porque foi assim que escrevi "família completa" por cima do coração com as caras de todos os meninos e que ofereci à professora, no Natal. Conheci a Lili, o Ricardo, o Altino, o Rui e muitos outros meninos, mas estes eram os da primeira classe. O Rui era mais velho que nós, mas era mais pequeno. E já andava há muito tempo na escola e ainda não sabia ler. E aquilo fez-me muita confusão. Para aí à terceira semana, pedi à professora para ficar ao lado do Rui, ser a sua colega de carteira. E a professora deixou. E a partir daí o Rui nunca mais precisou de escrever com lápis da escola, nem em papel da escola, nem pintar com marcadores dos colegas. Porque quando eu ia às compras pedia o material a dobrar, que era para o Rui também ter as coisas dele. Porque uma coisa é a gente emprestar, mas depois quando vamos para casa precisamos de ter as nossas coisas, não é mamã? É. Vá, leva então isto ao Rui. Mas para ele se calhar levamos azul, não achas? Pois, é melhor.
O Rui é anão. E tem um atraso mental. O Rui nunca aprendeu a ler. Mas... o Rui fará sempre parte da minha "familia cupuleta". O Rui é filho do Quim e da Luísa. Eles têm uma carroça e vivem de vender velas. E quando eu preciso de velas, daquelas em copo vermelho, eu vou sempre comprar a eles. Mas eles só têm dessas. Não vendem aromáticas! O Rui andava na APPACDM quando eu andava no liceu e entrava primeiro no autocarrro e guardou-me o lugar durante aqueles três anos. Porque eu nunca tive medo do Rui. O Rui tem um carro daqueles para que não é preciso carta e quando eu venho em sentido contrário, pára e levanta-me o braço. Nem que isso obrigue uma fila de carros a esperar que eu passe!
Quando eu cheguei a casa depois do primeiro dia de escolinha, tinha uns grafismos em forma de onda para fazer. E quando o meu primo Pedro, companheiro de todas as aventuras, veio ter comigo a casa, eu disse-lhe assim: "Sabes que tu és mais pequeno que eu. E que agora a nossa vida é diferente. Porque agora eu ando na escola e só posso brincar depois de fazer os trabalhos. Mas isto são só umas ondas. Até ver é fácil. Se esperares um bocadito e fizeres silêncio, eu acabo rápido e já vamos brincar." (Só quebrei esta preciosa regra uma vez, numas férias da Páscoa. Depois de duas semanas em casa, no domingo à noite os meus pais estavam para sair para ir ao cinema com um casal amigo e eu lembrei-me que não tinha feito os trabalhos. E foi ver aqueles quatro a fazer carreiras de letras a ver se ainda apanhavam a sessão. E eu de dedo em riste a dizer que tinham de fazer mais mal feito ou a professora desconfiava!!!)
E ele esperou. Como fizemos sempre um com o outro. Esperámos. Porque não fazíamos nada sozinhos. Porque se eu chorava enquanto me faziam as tranças, ele dizia: "Tem de ficar bem apertadinho para não se desmanchar. E não chores porque ficas tão linda." O meu primo já casou. E quando os pais tentaram procurar fotos de pequeno para o vídeo do casamento, tiveram alguma dificuldade em encontrar delas em que eu não estivesse. O meu primo Pedro tinha um gato, que era o Apolo, e que namorava com a minha gata, que era a Micha Cláudia.
Quando o meu primo Pedro foi para a primeira classe, eu já era profissional em ondas e até já tinha ultrapassado a grande dificuldade que foi saber fazer o i, porque era estranho ir e vir pelo mesmo caminho! Então fazíamos os trabalhos juntos. E a minha mãe depois corrigia-os, quando vinha da escolinha dela.
Nunca ninguém nos fez os trabalhos. Podiam explicar-nos, que explicavam, mas não faziam. Uma vez, numa ficha de matemática, havia um problema de compra de um frigorífico em prestações e eu à hora de almoço pedi ajuda ao meu avô. Mas ele não fez o problema. Explicou-me a situação. Até fingimos que o senhor queria era um fogão!
Por isso é que eu acho um bocadinho triste a necessidade de criar um site que faça os trabalhos aos meninos: faismesdevoirs.com Porque isso significa que os meninos não vão ter quem lhes diga que a conta se faz igualzinha se for um fogão. E os meninos não vão ter de aprender a esperar uns pelos outros. E, se calhar, qualquer dia não vão saber fazer ondas. E isso dá jeito para treinar fazer o mar.
Eu tenho pena de quem não tem pessoas. Tem só profissonais à sua volta. Eu tenho pena de quem não tem quem lhe explique que o segredo de um i perfeito é ir e vir pelo mesmo caminho. Eu tenho pena que os Ruis de hoje vão para escolas só de Ruis. E que os outros percam a oportunidade de os conhecer. Porque sim, são os outros que perdem. Nunca vão ter ninguém que pare o trânsito só para lhes levantar a mão. Nunca vão ter quem lhes reserve as velas em alturas de maior saída. Nunca vão ter quem diga que lhes empresta a carroça se casarem, porque as charretes devem ser muito caras. Nunca! E eu tenho pena.
Eu tenho pena que os meninos hoje não briquem na rua, nem tomem banhos de rio. Eu tenho pena que muitos não possam ter Michas Cláudias. Eu tenho pena. Eu tenho pena que as mochilas com meninas de tranças pareçam nada ao pé dos Magalhães. Eu tenho pena que não pareça importante os papás e as mamãs irem uma manhã inteira para a Românica, só para se escolher tudo muito bem escolhido. Eu tenho pena. Eu tenho pena que as meninas já sejam pouco meninas mesmo quando são meninas. E quase nenhuma use duas tranças. Eu tenho pena. Eu tenho pena que a maioria dos primos morem longe. E dos amigos também. E que as actividades tenham horário. Porque o bom é mudar de planos a meio da corrida de bicicleta. Eu tenho pena que já ninguém procure tesouros. Eu tenho pena que já ninguém tenha muitos mais avós que os seus avós e passe por casa deles à procura de línguas de gato. Eu tenho pena que já ninguém ache piada a pôr feijões a dormir. E que, pior ainda, não tenham ninguém que lhes explique que os feijões pretos podem namorar com os brancos, ou com os vermelhos. Os velhos com os novos. Os secos com os verdes. Porque o que importa é os feijões gostarem uns dos outros. Eu tenho mesmo pena. Porque acho difícil ser feliz assim.

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