sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Poemário essencial


A felicidade está sempre em outro lugar,
aquilo que chamamos felicidade, uma música,
uma ventania, um campo de milho
ao longo da estrada, os meus filhos
rodeando-nos, as tuas gargalhadas,
a roupa desarrumada, as janelas abertas.
Escrever sobre o assunto não o faz esquecer;

pelo contrário - ele vai e volta, como tudo.
Outros assuntos: um homem e, sendo assim, 
uma mulher, deviam aprender a dançar,
por exemplo; deviam recolher a água da chuva;
deviam viver em outro país, entre
estranhos; deviam coleccionar fotografias
e guardá-las para os tempos que hão-de vir.

O tempo que há-de vir é a substância
do amor, tal como a poesia devia falar
da semana que vem, das penumbras,
dos reencontros depois de muitos anos,
da paisagem que atravessa os sonhos, 
antes que alguém pergunte a meio da noite:
Que acontecerá depois disto? Somos dois estranhos?

Mas não se devem fazer muitas perguntas,
tal como não se deve deixar o coração à solta,
destruindo a nossa vida. Os poetas
mencionam muitas vezes o coração,
mas muitos deles, solenes, nunca ouviram
esse ruído da areia nos desertos - 
e, como nós, afinal, temem o amor vulgar.

Mas são meticulosos, os poetas, esperam
o reconhecimento por uma rima fatal,
lânguida, cheia de coisas baratas que se encontram
nos dicionários. E tem o seu efeito no verso,
é preciso reconhecer, desviando-nos da pequena
vulgaridade e dos negócios de família.
Mas eu talvez possa falar do amor vulgar:

faço o jantar quando chegas a casa, 
arrumo os livros, despejo os cinzeiros,
tratarei das vacinas, choro se for preciso
- mas nunca choro. Os poetas sensíveis
choram, sim, e procuram o nome das árvores,
as mais raras, o amor enche livros vastíssimos,
intenso, como um mundo que começa.

Que acontecerá depois disto? Fazes então
a pergunta e não sabes a resposta - esse
é o amor vulgar, como um retrato de todos nós,
uma espécie de comoção. Mas não fazes
versos ao entardecer e ocupamos a noite em tarefas
mais desprezíveis: ouves a minha respiração, 
ouço a tua, pensamos em sexo e em trovoadas,

culpamo-nos de pequenas coisas, tarefas
irrisórias, nada de elevado. Na verdade,
o amor vulgar ama essa despreocupação, ou
o desinteresse pela metafísica, pelas epopeias
interiores, pela grandiosidade de estilo, o brilho
das pérolas no fundo do mar - como nós, rindo
para suportar a insónia, escutando os carros

que passam na estrada, o vento empurrando o lixo
durante a madrugada, quando vem a primeira
luz, a mais fria. Que acontecerá depois disto?
Quase nada. Partes de repente e corro pela rua,
perseguindo o resto do teu perfume, arrependid(a).
Fico como uma figura de romance, desses vulgares,
ensoanad(a) no meio de uma estação vazia,

olhando para um comboio que partiu, e choraria
se fosse preciso - mas não choro, nunca choro.
As lágrimas são frequentemente uma armadilha,
um de nós sofre agora, depois o outro, 
o amor é um assunto igual em toda a parte,
frequentemente nos esquecemos de que há coisas
mais importantes para falarmos desse enigma:

o que acontecerá depois disto? Somos dois estranhos?
Digo muitas vezes o teu nome sem saber que
também dizes o meu. E não sabemos, nunca saberemos 
o que é o amor, somos gente vulgar, evitamos lágrimas
e metafísica, jantamos tarde, arrumamos a cozinha,
temos medo; depois tu partes, eu persigo 
os teus passos quando te afastas na minha direcção.


Francisco José Viegas

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